“Você já desconfiou da própria realidade?”
Título: O tempo desconjuntado
Autor: Philip K. Dick
Editora: Suma
Ano: 2018
Páginas: 272
Tradução: Braulio Tavares
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“De qualquer modo, por piores que sejam alguns livros, não são tão ruins quanto aqueles filmes de sexo para adolescentes, sobre corridas de carros, filmes do tipo James Dean e tudo o mais.” (DICK, Philip K. O tempo desconjuntado. Suma, 2018, p. 11)
Publicado pela primeira vez no Brasil, ‘O tempo desconjuntado’ explora os limites da realidade, fazendo o leitor se questionar sobre a concretude de sua percepção acerca do mundo que o cerca.
Autor cada vez mais popular
Não há como negar que o estadunidense Philip K. Dick (PKD) é um autor em plena ascensão no Brasil. O leitor brasileiro já recebeu em 2018 o livro ‘Sonhos elétricos’, uma coletânea de contos (que já resenhei), e agora acaba de receber um livro inédito até então, ‘O tempo desconjuntado’.
Pelas informações disponibilizadas pela Suma — que passou a investir pesado na publicação de ficção científica —, teremos mais livros inéditos de PKD por aí. É interessante que a Suma publique esses livros inéditos, menos conhecidos, pois os grandes clássicos, como ‘O homem do castelo alto’, já são publicados pela amada editora Aleph.
Mais uma vez a triste história de PKD se repete. Seu reconhecimento como um grande autor de ficção científica foi um tanto quanto tardio. Ele passou praticamente toda sua vida profissional em um estado de quase-pobreza. Em 1982, seu clássico ‘Androides sonham com ovelhas elétricas?’ foi adaptado para o cinema, dando origem ao filme ‘Blade Runner’. Porém, pouco antes da estreia do longa, PKD faleceu, vítima de uma parada cardíaca seguida de um acidente vascular cerebral. Seu reconhecimento no Brasil está crescendo; não que ele fosse desconhecido, mas a ampla disponibilidade de suas obras nas livrarias brasileiras mostra que sua fama está aumentando, e isso é ótimo! A literatura de ficção científica agradece!
“A palavra não representa a realidade. A palavra é realidade.” p. 62
Sua vida é real?
Mesmo nos Estados Unidos, ‘O tempo desconjuntado’ não é uma das obras mais populares de seu autor. Nunca foi adaptado para o cinema, não é citado como um de seus melhores livros, todavia foi a obra que colocou os holofotes sobre PKD. Foi um livro que capturou novos leitores e chamou a atenção da crítica; um importante passo em sua carreira literária.
Apesar de não ser um livro tão famoso, o enredo é muito criativo e instigante, o que causa certa revolta: como esse livro não é tão popular assim?
A narrativa gira em torno de Ragle Gumm, veterano da Segunda Guerra Mundial, que vive na casa de sua irmã, que, por sua vez, é casada e tem um filho. Ragle não tem um emprego, ele ganha a vida com o dinheiro que recebe por ser o campeão do concurso de um jornal. Sua vida segue seu ritmo normal, até que certos questionamentos surgem em sua mente, assim como uma infelicidade com seu “emprego”. Ademais, ele começa a ter certas ilusões, como se o mundo de desfizesse diante de seus olhos.
Essa série de acontecimentos estranhos faz com que Ragle passe a se questionar: será que o mundo é uma conspiração contra ele, ou sua mente entrou em colapso, um caso de psicose? Ao longo da narrativa, o protagonista descobrirá que a realidade não é bem como ele imagina que seja e descobrirá verdades desconcertantes.
“Pelo fato de acreditar que todos estão contra o senhor, acaba colocando todos contra o senhor.” p. 65
Mais ficção, menos filosofia
É incrível, mas, geralmente, o foco dos principais romances de PKD não é a ficção científica em si, mas sim questionamentos filosóficos que estão por trás dos mundos futuristas que o autor tanto gostava de criar.
Já em ‘O tempo desconjuntado’ a ênfase é muito maior na ficção científica, no mundo distópico que nos é apresentado, com poucas questões filosóficas como pano de fundo; não é uma leitura tão reflexiva assim.
Publicado originalmente em 1959, essa obra traz diversos temas recorrentes de seu tempo: temor pós-guerra, gerado pela capacidade de destruição da tecnologia nuclear; o medo de uma nova guerra; o fascínio do homem pela Lua e a ascensão da TV (mas aqui há um motivo para os televisores terem substituído os rádios por completo). É um livro que retrata bem a realidade da população estadunidense no início da Guerra Fria, todo o medo e desconfiança.
Por conta dessa mentalidade do final da década de 1950, o mundo futurista que será apresentado ao leitor não é tão de acordo com o que realmente aconteceu; as previsões foram falhas. Esse mundo do futuro lembra um pouco do que vemos em ‘Laranja mecânica’, com jovens violentos que se comunicam por meio de gírias estranhas. Quem já assistiu ao filme ‘O show de Truman’ encontrará diversas similaridades — é bem provável que seus produtores buscaram inspiração em ‘O tempo desconjuntado’.
“— Eu sempre achei que não podia aprender nada de útil na letra de uma música popular. Eu estava errado.” p. 234
Sobre a edição
Uma edição caprichada. Capa dura, miolo em papel Pólen Soft e boa diagramação. A arte da capa é muito bonita e chama a atenção (ficou mais bonita que as capas da editora Aleph).
Braulio Tavares, grande escritor e poeta brasileiro, fascinado por ficção científica, teve a honra de traduzir esta obra pela primeira vez no Brasil. Um excelente trabalho de tradução, executado por alguém que já traduziu grandes autores, como H. G. Wells, e que ama esse gênero literário.
“E o mais irônico, pensou ele, é as pessoas dizerem que Deus nunca quis que o homem viajasse pelo espaço.” p. 257
Conclusão
Obra até então desconhecida pelo grande público brasileiro. Em ‘O tempo desconjuntado’ PKD apresenta um mundo distópico, onde vive o protagonista Ragle Gumm. Questionar os limites da realidade sempre foi algo que o autor gostou de fazer, e aqui esse questionamento realmente toma forma. O protagonista começa a perceber que o mundo não é bem aquilo que ele realmente vê, há algo de errado com a realidade. Tudo é criado e apresentado de forma muito criativa, a imaginação de PKD foi longe, porém faltou um pouco de polimento, um pouco mais de explicações. O final é corrido, tudo é revelado em uma saraivada de fatos e logo o livro termina. Entretanto, por se tratar de um livro publicado em 1959, quando o autor tinha 31 anos, talvez tenha faltado um pouco de experiência para que ele conseguisse criar uma história com mais corpo. Quem já leu suas obras mais famosas sabe como ele gostava de inserir questionamentos filosóficos em seus romances, o que não acontece muito em ‘O tempo desconjuntado’. O foco principal é o enredo criativo, que entretém demais e prende a atenção do leitor. Descubra um Philip K. Dick de um modo inédito no Brasil.
“— Numa guerra civil — disse Ragle —, todos os lados estão errados.” p. 263
Minha nota (de 0 a 5): 4
Alan Martins

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