Minhas Leituras #41: Ensaio sobre a cegueira – José Saramago

ensaio_sobre_cegueira_destaque

“Sem se fingir de cego para com alguns problemas”

Título: Ensaio sobre a cegueira
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
Ano: 1995
Páginas: 312
Encontre este livro na Amazon: https://amzn.to/2PFMM9R

“[…] mas quando a aflição aperta, quando o corpo se nos desmanda de dor e angústia, então é que se vê o animalzinho que somos”. (SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. Companhia das Letras, 1995, p. 243)

Em termos mundiais, o português não é um idioma cultuado, nem valorizado. Isso influencia a literatura, com autores lusófonos pouco conhecidos em países que falam outras línguas. Existem algumas exceções, como José Saramago, único autor, escrevendo em língua portuguesa, a vencer um Prêmio Nobel de literatura. Seu livro mais conhecido, ‘Ensaio sobre a cegueira’, é uma história pós-apocalíptica, com grandes debates filosóficos sobre ética e uma humanidade sem regras.

Um crítico da igreja

Antes de atingir o sucesso literário, o português José Saramago trabalhou como serralheiro e funcionário público. Seu primeiro romance, ‘Terra do pecado’, foi publicado em 1947, aos 25 anos. Voltou a publicar apenas em 1977, com ‘Manual de pintura e caligrafia’, e desde então criou uma vasta obra, até sua morte, em 2010.

Foi um cidadão de grande engajamento político, um membro ativo do Partido Comunista Português. Foi, também, um grande crítico da igreja Católica. A tensão entre o autor e a instituição religiosa aumentou após a publicação do polêmico livro ‘O evangelho segundo Jesus Cristo’, que apresenta um Jesus humano, com desejos humanos e não como o filho de Deus. Saramago teve que deixar Portugal e ir viver nas Ilhas Canárias, devido à enorme pressão e vontade de censura que a igreja estava exercendo sobre o governo português.

Deixou um grande legado para os escritores da língua portuguesa, levando o idioma ao reconhecimento mundial, mostrando que o povo lusófono é capaz de contribuir, e muito, para a literatura.

“[…] se antes de cada acto nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar” p.84

Uma epidemia de cegueira

Logo na primeira cena, já temos ideia de como o livro será. Com o carro parado, esperando a luz verde do semáforo acender, um homem fica cego e entra em desespero. Não é uma cegueira comum, ele vê tudo branco, não o breu. Há um surto de cegueira, que logo se torna uma epidemia. O governo precisa tomar alguma providência e decide criar zonas de quarentena. Nossos protagonistas não nomeados (o narrador se refere a eles por suas características físicas, ou por suas respectivas profissões, ou pelo estado civil) se encontrarão em uma dessas zonas, fortemente guardadas. Temos um cenário pós-apocalíptico, com muita destruição — física e moral —, assim como tempos de grandes dificuldades.

Como seria o mundo se ninguém pudesse enxergar? Como as pessoas agiriam? Haveria organização? Ética? Regras? São questões que Saramago discute ao longo da narrativa, com grande maestria e, às vezes, com humor negro. Ele não tem pena das personagens que criou. O ritmo é constante. Desde a abertura até o final, o livro apresenta cenas que chocam, parece que a desgraça dos protagonistas nunca para de crescer. Algo positivo, que deixa a leitura menos monótona.

Cada leitor interpretará o romance de uma forma diferente. É um texto muito metafórico, com os fatos funcionando como símbolos. O que a cegueira significa, afinal? Talvez represente a humanidade fechando os olhos para os problemas do mundo. Ou, talvez, represente a falta de ética que assola a sociedade moderna. A interpretação é de cada um. Leitura que nos faz pensar sobre o bem e o mal, em como podemos nos assemelhar a animais em situações extremas, viver sem pudor, na sujeira. Não é um livro fácil, mas um que nos faz refletir sobre a vida.

“[…] a alegria e a tristeza podem andar unidas, não são como a água e o azeite […]” p. 67

No meio dessa cegueira, avistei problemas

Não é só porque o autor venceu um Nobel que ele fica livre de críticas. O enredo é bom e reflexivo, inteligente, porém, a forma na qual é narrado não é muito amigável. O narrador já sabe de tudo, ele fala sobre algo que já ocorreu, não vai desenvolvendo a história junto ao leitor. Frases do tipo, “mas falaremos sobre isso adiante”, são pouco animadoras. É uma análise feita sobre fatos passados, essa é a impressão que dá.

Trata-se de um escritor português, que utiliza a maneira de escrever de Portugal. Muitas palavras são diferentes entre o português do Brasil e o de lá. Isso não atrapalha, é compreensível, mas causa estranheza em alguns momentos (considero nossa maneira de escrever muito mais bonita). Todavia, a estrutura do texto é incomum, essa pode atrapalhar. Saramago não pontua os diálogos, eles estão enfiados dentro das orações, sabemos que é um diálogo porque o narrador explica e pelo uso de maiúscula. Isso faz com que a leitura não flua tão bem, ao menos para quem não está acostumado.

O autor subestima a inteligência e a capacidade interpretativa do leitor em certas passagens, com explicações óbvias e desnecessárias sobre o que está ocorrendo na história. Há o uso do recurso deus ex machina, apresentando soluções pontuais, que caem do céu sobre o colo dos protagonistas. São soluções que tiram o brilho da narrativa, pois aparecem apenas para que a história continue, ao acaso, sem uma explicação.

Existe um debate sobre o bem e o mal. Há os mocinhos e os malvados. Os mocinhos são críveis, não são perfeitos, apresentam seus defeitos, como todo ser humano. Mas os malvados, esses são um retrato caricato da maldade. Apenas fazem o mal por fazer, já que o mundo do enredo está sem regras, nada irá impedir seus atos. São antagonistas que causam nojo, apenas, não são vilões que possuem um outro lado que não o mau.

Pode-se criticar algumas escolhas de certas personagens, que não fazem muito sentido, já que uma adversidade poderia ser resolvida muito antes. Como a parte em que uma das protagonistas encontra uma tesoura (que, por acaso, surgiu na história). Ela poderia tê-la usado muito antes para resolver um problema, entretanto, Saramago resolveu que não, e quando o utensílio entrou em ação, foi de maneira menos impactante.

Falando em ação, há pouca nesse livro, não é ruim, mas deixaria a história mais empolgante. As divagações do narrador cansam um pouco. E por fim, o enredo é um pouco previsível (os atos dos malvados se encaixam aqui), chocando muito mais do que surpreendendo.

“Provavelmente, só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são” p. 128

Sobre a edição

Este é um livro editado pela Companhia das Letras desde 1995. Não houve muita mudança na parte física. Capa comum, com orelhas, brochura, miolo em papel Pólen Soft e boa diagramação (margens largas, mas com pouco espaçamento entre linhas). Sem erros ortográficos, o que faz sentido, muitas revisões foram feitas após vinte anos da primeira publicação. A imagem da capa é simples, mas representa bem o enredo, a forma em que os relevos estão espalhados. A cor branca faz boa alusão à cegueira branca.

“[…] diante das adversidades, tanto as provadas quanto as previsíveis, é que se conhecem os amigos” p. 107

Conclusão

Saramago é um autor de inegável talento. Sua visão sobre um mundo sem regras é perspicaz, nos fazendo refletir sobre a sociedade e sua ética. A desolação desse mundo é ricamente detalhada, mostrando um inferno na Terra. Protagonistas muito bem construídos. Os pontos negativos atrapalham, com uma estrutura textual estranha, mesmo que essa seja uma característica do autor, além de uma linguagem muito formal em situações onde isso não se encaixa. Leitura interessante, mas um tanto quanto cansativa. Vale a pena conhecer esse grande autor, mas, dificilmente colocaria este como um dos melhores livros do mundo.

“Como está, senhor doutor, é o que dizemos quando não queremos dar parte de fraco, dissemos, Bem, e estávamos a morrer, a isto chama o vulgo fazer das tripas coração, fenómeno de conversão visceral que só na espécie humana tem sido observado” p. 41

Minha nota (de 0 a 5): 3,5

Alan Martins

P. S. O livro foi adaptado para o cinema em 2008, com direção do brasileiro Fernando Meirelles. Saramago não queria vender os diretos de sua obra para uma adaptação cinematográfica, mas acabou cedendo, e até gostou do resultado final.


ensaio_sobre_a_cegueira_meu
Capa simples, mas que representa bem a ideia do livro.

Parceiro
Livros mais vendidos Amazon
Clique e encontre diversos livros em promoção!

Licença Creative Commons

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional.

Autor: Alan Martins

Graduado em Psicologia. Amante da Literatura, resenhista e poeta (quando bate a inspiração). Autor e criador do Blog Anatomia da Palavra. Não sou crítico literário, porém meu pensamento é extremamente crítico. Atualmente graduando em Letras.

29 pensamentos

  1. Sem dúvida José Saramago é um excelente escritor, mas um tanto pesado para mim; prefiro algo fluido. Por outro lado seus temas são profundos, seus interesses são sérios e tudo bem aliado a seu pessimismo. Comecei a ler um de seus livros e não pude continuar pela falta de prazer na leitura; depois vi o filme do livro que você comentou e a estória pareceu-me assustadora. Parabéns pelo comentário Alan – muito bom – Abraço da Mariluz

    Curtido por 1 pessoa

    1. Os temas realmente são pesados, realistas, mas a escrita não é a mais fluida mesmo, é carregada e lenta. Quem não gosta de uma prosa assim, terá dificuldades. Gostei muito dos temas e da inteligência do autor, porém não é o livro mais divertido de se ler, nem o mais prazeroso, o que poderia ter sido melhor, ficando como ponto negativo.
      Obrigado pela visita! 🙂
      Abraço.

      Curtido por 1 pessoa

      1. Sem dúvida, se for clássico ainda mais. Eu como moro em Inglaterra a oferta de livros em português é nenhuma (e aqui arranjam-se livros baratíssimos). Mas como sou fluente na língua e quero praticar ainda mais, opto por ler sempre em inglês.

        Curtido por 1 pessoa

      1. Imenso! De difícil leitura, de Saramago, é o Memorial do Convento, em que temos páginas e páginas sem parágrafos e a pontuação é “intermitente” – este somente li porque era leitura obrigatória na escola. Ensaio sobre a cegueira li voluntariamente e adorei.

        Curtido por 1 pessoa

      2. Diversão no amor de perdição não houve, drama, mortes e infelicidades, por outro lado, foi uma constante. Adorei! Eu adoro clássicos, tentei ler Anna Karenina e estava a adorar mas, vivendo em Inglaterra tenho o exemplar em inglês e torna-se uma leitura muito pesada e lenta e para mim leitura é prazer fluído. Aconteceu-me o mesmo com Mansfield Park de Jane Austin, portanto acho que desisto de os ler sem ser em português.

        Curtido por 1 pessoa

      3. Olha que interessante. Eu li outro dia que o tradutor Rubens Figueiredo, que inclusive traduzir Anna Karenina, também prefere ler os livros em português, pela familiaridade com o idioma. No final, toda leitura, em outra língua, seria uma forma de tradução, para nosso idioma materno.

        Curtido por 1 pessoa

    1. Fico muitíssimo feliz em saber que gosta de acompanhar as resenhas!
      Tente ler sim, é um livro bem interessante, mas esteja ciente de que não é a leitura mais fácil do mundo, longe disso. Vale a pena dar uma chance.
      Agradeço o comentário.
      Abraço. 🙂

      Curtido por 1 pessoa

  2. Saramago é único e extraordinário em sua escrita e estética. Complexa? Sim, às vezes sim, mas é esta estética que evolui o texto e o subtexto de suas histórias. Leio Saramago faz um bom tempo e em um ponto concurdo:não é o seu melhor libra. O Evangelho…, Intermitências da morte, Levantado do chão entre outros são magníficos. O que importa independente de gostar ou não é ler, conhecer como fez você. O senso crítico amadurece e o pensamento cresce (desculpe a rima). Abraço, Alan.

    Curtido por 2 pessoas

    1. Tenho mais dois livros dele para ler ‘O evangelho segundo Jesus Cristo’ e ‘A história do cerco de Lisboa’. Estou curioso sobre o primeiro, sobre a polêmica envolvida. Porém, não faço ideia do que esperar do livro, algo surpreendente, acho.
      ‘Ensaio sobre a cegueira’ foi algo diferente, um estilo que eu ainda não tinha lido, talvez eu me acostume mais com o tempo, e até possa apreciar mais. Não digo que não gostei do livro, apenas não foi tão fluido, pois é uma boa obra, ou não seria o sucesso que é. No fim, vale o conhecimento e a valorização do nosso idioma, mesmo que o daqui e o de lá tenham algumas diferenças.
      A rima foi boa! 😂
      Obrigado pelas palavras. Abraço!

      Curtir

  3. Conferso que só tive contato com Saramago na escola e nunca me interessei muito pela escrita porque julguei ser muito “difícil” e não entendia muito bem assim como a do escritor Machado de Assis,mas gostei da sua resenha e vendo pela suas descrições o livro parece ser interessante e com grandes questionamentos. 😊😘

    Curtido por 1 pessoa

    1. Sim, difícil e estranha é mesmo, e não é por questões de entender o livro, mas sim pela estética, estrutura. Confesso não ser do meu gosto, um estilo que eu aprecio ler. A história, em si, é boa. Vale a pena conhecer, é um autor que contribuiu muito para a literatura moderna em português.
      Abraço, obrigado por comentar!

      Curtido por 1 pessoa

  4. Eu li Ensaio sobre a cegueira faz um tempinho, queria reler…..Gostei muito na época, mas tive dificuldade, com o discurso indireto livre, como vc também pontuou. Como vc disse, a língua portuguesa é pouco prestigiada, então para ele ter ganhado o Nobel, realmente foi um feito gigante. Acredito que precisamos prestigiar mais os autores de língua portuguesa! Parabéns, pelo post! Abçs!

    Curtido por 1 pessoa

    1. Obrigado! A escrita é um pouco diferente mesmo, mas o estilo de Saramago é o mais diferente, e o que dificulta mais a leitura. Tenho mais dois livros dele aqui para ler, não sei o que esperar, de vai ser nesse mesmo estilo de texto. Veremos!
      Temos que prestigiar sim grandes autores, que colocaram nosso idioma em evidência. Não conheço muito a literatura de Portugal para fazer comparações, mas coloco nossos autores clássicos acima de Saramago, ao menos por este livro.
      Abraço! Agradeço a visita.

      Curtido por 1 pessoa

Deixe um comentário