“O ‘romance dos romances'”
Título: Madame Bovary
Autor: Gustave Flaubert
Editora: Nova Alexandria
Ano: 2009
Páginas: 360
Tradução: Fúlvia M. L. Moretto
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“O amor não precisaria, como as plantas indianas, terrenos preparados, uma temperatura própria?” (FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Nova Alexandria, 2009, p. 64)
Considerado o “romance dos romances”, ‘Madame Bovary’ é o marco da narrativa realista moderna. Romance tanto em gênero literário, quanto em estilo de composição em prosa, este livro inspirou diversos autores, para citar um, por exemplo, o vencedor do Nobel Mario Vargas Llosa. Como boa parte dos clássicos do século XIX, gerou polêmica quando foi publicado, recebendo uma tentativa de censura. Conheça um pouco mais sobre essa obra, cultuada até os dias atuais e que estava à frente de seu tempo.
Um autor meticuloso
Flaubert viveu em um período muito rico para a literatura francesa, marcado pelos grandes escritos de Victor Hugo e Honoré de Balzac — autores que lhe serviram de inspiração. Talvez os três sejam os nomes mais conhecidos da literatura francesa.
Foi um autor conhecido pela sua escrita perfeccionista. Acreditava que a “palavra certa” poderia tornar um romance bom, ou ruim. Sua busca por essa tal “palavra certa” fazia, às vezes, com que levasse uma semana para escrever uma única página. Motivo pelo qual produziu bem menos obras, se comparado a outros autores, como o próprio Balzac. Esse seu perfeccionismo o levou a ser muito detalhista na descrição de cenários, o que nem sempre é muito bom, pois é algo que deixa a leitura cansativa, congelando a trama.
Seus romances mais conhecidos são ‘Madame Bovary’ e ‘A educação sentimental’. Inspirou diversos autores ao longo do tempo. Em ‘Travessuras da menina má’, de Vargas Llosa, notamos uma grande semelhança entre a história de Emma e a de Lily. O próprio autor peruano afirma se tratar de uma releitura do grande clássico de Flaubert.
Esse grande autor francês denominou as características para a prosa moderna, o que demonstra sua importância para a literatura. Como a maioria dos artistas clássicos, faleceu cedo, em 1880, aos 58 anos.
“O dever é sentir o que é grande, amar o que é belo e não aceitar todas as convenções da sociedade com as ignomínias que ela nos impõe”. p. 135
O romance dos romances
O livro começa de forma estranha. As primeiras páginas narram, em primeira pessoa, a juventude de Charles Bovary, um rapaz simples e tímido do campo. Porém, de maneira abrupta, a narrativa muda para a terceira pessoa. Talvez o autor estivesse confuso sobre como escrever e acabou se esquecendo de corrigir isso, pois era ainda inexperiente — ‘Madame Bovary’ foi seu romance de estreia.
Charles estuda medicina, mas como não é muito inteligente, consegue apenas se tornar um agente de saúde, que cuida dos primeiros socorros, de casos mais simples. Ele sai de cena quando o livro nos apresenta Emma, uma jovem sonhadora, que vê o mundo de uma forma extremamente romântica, assim como nos grandes romances literários.
Emma não gostava da vida provinciana (o subtítulo do livro é ‘Costumes de província’) e viu em Charles uma esperança de uma vida mais agitada, nas grandes cidades, viver um grande romance, assim como naqueles que lera no convento, onde estudou. Eles se casaram, entretanto, nem tudo foi como Emma havia imaginado.
Pode-se considerar Emma como uma personagem muito inocente e egoísta. Deixa-se levar por falsas ilusões (hoje em dia ela seria chamada de “iludida”, aquela que os caras só iludem), romantiza demais as coisas e apenas pensa em si, em satisfazer suas fantasias. Se vivesse em tempos mais modernos, de maiores liberdades para as mulheres, sua vida poderia ser diferente. O recalcamento de seus sentimentos a faz mal, o que uma leitura psicanalítica da obra poderia explicar muito bem. Seu marido a ama muito, porém é um homem medíocre, nada romântico, trabalhador, mas ingênuo — a capacidade que Emma possui para romantizar, Charles tem de ingenuidade.
Cria-se uma divisão de sentimentos para com as personagens. Ficamos com raiva de Emma, pelo seu egoísmo, nervosos pela sua ingenuidade, tristes por suas desilusões e arrasados com o seu destino. Com Charles é igual, sua ingenuidade é irritante, sempre se deixa enganar por todos, mas o amor que sente por sua esposa é lindo e verdadeiro, mesmo que sua mediocridade não lhe permita demonstrar esse sentimento de maneira mais apropriada.
Ou seja, é uma história de amor, que remete às grandes tragédias gregas.
“Um homem, pelo contrário, não deveria conhecer tudo, ser exímio em múltiplas atividades, iniciar uma mulher nas energias da paixão, nos refinamentos da vida, em todos os mistérios? Mas ele nada ensinava, nada sabia, nada desejava. Julgava-a feliz e ela tinha-lhe raiva por aquela calma tão bem assentada, por aquele peso sereno, pela própria felicidade que ela lhe dava”. p. 50
Flaubert e o tribunal
Antes de ser publicado em volume único, o romance teve sua primeira publicação feita de forma serializada na revista ‘La Revue de Paris’. O advogado imperial Ernest Pinard processou Flaubert por ferir a moral pública e religiosa com seu romance. Isso levou o autor, o dono da revista e o responsável pela impressão ao tribunal.
Mesmo que ‘Madame Bovary’ contenha cenas de adultério e algumas críticas à religião, nada é descrito explicitamente e nenhuma crítica fere o cristianismo. As acusações se basearam em trechos isolados da obra, que foram rebatidas de forma magistral pelo advogado de defesa, o Sr. Sénard. Pinard ficou sem palavras durante o julgamento, ao ouvir a defesa. Até parecia que o delator apenas estava tentando chamar a atenção, querendo “causar” com sua acusação.
Todos os envolvidos foram absolvidos, de maneira um tanto quanto errada. Disseram que, mesmo que o livro contenha partes imorais, a história e seu desfecho são morais e não representam perigo para jovens leitoras. No fim, isso funcionou para alavancar as vendas, tornando Flaubert um autor conhecido pelos leitores de seu país.
“O dever é sentir o que é grande, amar o que é belo e não aceitar todas as convenções da sociedade com as ignomínias que ela nos impõe”. p. 135
Sobre a edição
Recebi minha edição quando estava no terceiro ano do Ensino Médio, em 2011. O Governo do Estado de São Paulo distribuía kits de livros aos alunos do Ensino Médio da rede pública, como parte do programa Apoio ao Saber. Por isso não é possível analisar a qualidade física da edição, pois foi adquirida gratuitamente. É uma edição em capa mole, sem orelhas, com miolo em papel offset e uma diagramação boa. A versão comercial está disponível nas livrarias, em formato mais caprichado, em capa dura.
A tradução fica como o maior mérito desta edição. Feita pela grande estudiosa da língua francesa Fúlvia M. L. Moretto, é considerada a melhor tradução da obra para o português. O cuidado com a tradução e o conhecimento de Moretto sobre a obra ficam evidentes nas diversas notas explicativas e na introdução, escrita pela mesma. Como extra, a edição apresenta o processo movido contra Flaubert, na íntegra.
“Porém, mais Emma percebia seu amor, mais o recalcava, a fim de que ele não se evidenciasse e para diminuí-lo”. p. 106
Conclusão
Romance clássico, apresenta personagens que despertam diversos sentimentos no leitor. Quem lê passará a amar odiar Emma Bovary. Seu caráter histórico mostra como a arte já sofreu diversas tentativas de censura, e ainda sofre, devido ao falso moralismo presente em certos cidadãos detentores de poder. Certas partes da história ficam tediosas, culpa do caráter perfeccionista de Flaubert, que acaba atrapalhando a leitura com detalhes excessivos. O leitor moderno pode não gostar muito do estilo de narrativa, porém o esforço de levar a leitura adiante será recompensado. Trata-se de uma história que cria um misto de sentimentos e merece ser conhecida.
“O mais medíocre libertino sonhou com amantes; cada notário traz em si os destroços de um poeta”. p. 251
Minha nota (de 0 a 5): 4
Alan Martins
*O mundo não acabou ontem. Viva, somos sobreviventes! E olha que bacana: como não morremos, temos mais oportunidades para começar a ler. Aproveite, antes que alguém realmente acerte a data do final dos tempos! 😜

Parceiro

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Entrada muito boa!
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Obrigado! Isso é bom, sinal que chamou a atenção para o texto. 😀
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Tchekhov, em alguns contos, descreveu algumas de suas personagens como volúveis e que buscavam em outro relacionamento preencher os vazios existenciais ( lembrei muito de ” A Dama do Cachorrinho”). Acredito que Emma, para a época, seja a representação da mulher que tbm busca a sua felicidade sem medir as consequências de seus atos. Assim, também como Anna Karenina do Tolstói. Flaubert soube mostrar, com o seu romance, a degradação física e psíquica do ser ao se entregar ao adultério. Gostei muito sua análise da obra, Alan. Espero reler Madame Bovary um dia. Abraço
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Obrigado pelo comentário esclarecedor!
Cada grande autor daquela época possuía a sua dama em busca da felicidade acima de tudo, né? Eu tenho ‘Anna Karenina’, essa nova edição da Cia. das Letras. Quando eu tive tempo, vou ler, porque é um livro grandinho. Os elogios à obra só aumentam a curiosidade.
Abraço.
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Livro essencial. Quando na Faculdade estudei criação literária Madame Bovary era leitura obrigatória. Todavia, magnífica. Um belo post, Alan. Abraço.
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Realmente, um livro essencial para quem gosta de ler e para quem gosta de escrever. Flaubert, com seu perfeccionismo, pode ensinar como descrever, e até como não exagerar em descrições.
Obrigado pela visita.
Abraço.
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Chamou minha atenção: “Charles estuda medicina, mas como não é muito inteligente, consegue apenas se tornar um agente de saúde, que cuida dos primeiros socorros, de casos mais simples.”:P No geral, achei interessante. Essa classe de mulheres iludidas é o que mais tem. 😀
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Nas notas de rodapé, a tradutora explica que havia essa diferença entre médicos e agentes de saúde. Aparentemente o curso era o mesmo, mas o seu avanço na área era o que mudava as coisas.
O livro é bem moderno, o tema de “ser iludido” é bem moderno! 😂
Você conhecia a história?
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Sim 😀 Do ser iludida mais ainda rsrs
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