Um resumo sobre a história da Luta Antimanicomial

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Imagem exibindo uma ala do Hospital Colônia de Barbacena, um Município do Estado de Minas Gerais conhecido em todo o Brasil e no exterior como a “Cidade dos Loucos”, devido ao grande número de hospitais psiquiátricos que havia na cidade. Autor desconhecido.

A loucura já foi compreendida de diversas maneiras ao longo dos séculos: já se pensou que se tratava de uma possessão demoníaca, já tentaram isolar os “loucos”, mantendo-os afastados da população, até chegarmos à lógica médica-psiquiátrica de internação. Essa lógica de manter a pessoa em sofrimento psíquico (um termo mais adequado) sob constante vigilância e punição foi muito discutido por Michel Foucault em suas obras ‘Vigiar e punir’ e ‘A história da loucura’. Essa lógica contribuiu para a criação dos manicômios, que davam um tratamento moral aos pacientes, isolando a doença do resto do sujeito. Enfim, esses “hospitais” se tornaram laboratórios de pesquisas com doenças e doentes e um espaço de reprodução do saber médico. Na década de 60, essas instituições eram utilizadas por grupos econômicos para a “fabricação da loucura”, com o interesse de fomentar a cronificação, mantendo a clientela, ao invés de oferecer um tratamento aos pacientes.

O tratamento dentro dessas instituições pode ser considerado como, no mínimo, desumano e insuficiente. Baseado em medicação, métodos violentos como o eletrochoque, total descaso com os pacientes, que eram deixados “às traças”, sem qualquer tipo de cuidado. Não havia o intuito de promover a emancipação do sujeito, sua autossuficiência, pois esses eram privados da liberdade e interação social. O que ocorria era a total alienação e a perda de identidade. Viver isolado, com tratamentos cruéis, com intenso uso de medicamentos — medicamentos são importantes, porém, sozinhos, trazem mais problemas do que ganhos, podendo levar à dependência — apenas contribuía para a formação de pessoas dóceis, tornando o trabalho dos funcionários, de vigiar e punir, mais simples.

Da década de 60 em diante, os próprios funcionários dessas instituições começaram a perceber que o que ocorria ali dentro não estava certo. Isso deu início à diversas discussões e movimentos em prol de tratamentos mais humanos. Em 1987 houve, na cidade de Bauru/SP, o Congresso de Trabalhadores de Serviços de Saúde Mental, que deu visibilidade ao movimento da Luta Antimanicomial. Esse congresso ocorreu no dia 18 de maio, por isso esse movimento é lembrado nessa data. Quais foram os avanços obtidos na área da saúde mental desde a década de 1980 até os dias de atuais?

Contextualização histórica da Luta Antimanicomial

O Movimento Nacional da Luta Antimanicomial teve início na década de 1970 (uma época de grandes movimentos sociais no país, que buscavam sua redemocratização), a partir de discussões sobre a assistência psiquiátrica oferecida nos manicômios. Esse Movimento precede o MTSM (Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental). O MTSM iniciou uma crítica à epistemologia do saber psiquiátrico, de sua função de repressão e ordem social.

O Congresso de Bauru, já citado, marcou o fim do predomínio dos profissionais da saúde, dando espaço aos usuários e funcionários para comporem a questão da saúde mental, além de expandir esse debate à sociedade. Esses debates incluíam o reconhecimento da situação dos portadores de transtorno mental, novas práticas em saúde mental e seus direitos. Foi apontado, também, a necessidade de mudanças simbólicas sobre o conceito existente na sociedade sobre doença mental.

Diversos eventos posteriores marcaram a consolidação desse movimento, definindo novas formas de atenção em saúde mental, criação de políticas públicas e o gradativo fechamento de manicômios pelo país. É importante destacar que a questão da saúde mental evoluiu junto com a questão da saúde pública, com a criação do SUS (Sistema Único de Saúde), após a redemocratização do país no final da década de 1980.

Esse Movimento busca, ainda hoje, ser oposição a iniciativas do poder legislativo, como as de 2012, que visavam o fortalecimento das internações compulsórias e o financiamento público de comunidades terapêuticas, além dos ataques às conquistas da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial. Esse Movimento luta pelos princípios do SUS e promove eventos que debatem sobre a segregação e o higienismo.

Alternativas ao modelo manicomial

Onde vivo, Tupã, interior de São Paulo, ainda existe um hospital psiquiátrico, que, felizmente, está prestes a encerrar suas atividades. A população, desinformada, se pergunta sobre o que irá acontecer com essas pessoas que estão internadas, para onde elas irão, e coisas do tipo. Existem modelos de cuidado em saúde mental que substituem o modelo asilar, como modelos de atenção que visam trabalhar a subjetividade do indivíduo, que compreendem que a “loucura” é o modo que ele possui para expressá-la. São instituições que trabalham de maneira emancipatória, envolvendo a interação social, dando liberdade e incluindo a família. E a grande maioria da população desconhece esses serviços.

O CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) é um dos dispositivos da Política Nacional de Saúde Mental que visam a substituição do modelo asilar. O processo terapêutico, nos CAPS, é planejado de uma maneira que o indivíduo e sua família possam se envolver na recuperação e na superação de dificuldades, decorrentes da condição de saúde mental. Podem ser definidos atendimentos intensivos (diários), ou semi-intensivo (três vezes por semana), ou não intensivo (semanal). É um serviço que espera a promoção de saúde mental, priorizando as demandas das relações diárias como sofrimento às singularidades deste tipo de cuidado, sendo este serviço articulado às redes de saúde, redes sociais do território e redes de outros setores.

Esse modelo utilizado pelos CAPS visa um rompimento com o modelo manicomial, constituindo um campo multidisciplinar (equipe formada por profissionais de diversas áreas da saúde), desenvolvendo práticas de inclusão social. Os CAPS são divididos em: CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPSi (CAPS infantil) e CAPSad (CAPS Álcool e Drogas).

Além dos CAPS, existem as Residências Terapêuticas (RT). As RTs são moradias ou casas inseridas na comunidade com o objetivo de acolher egressos de internações psiquiátricas de longa permanência e que não possuem laços familiares. Essas residências devem possuir algumas características físico-funcionais: cada uma deve acomodar no máximo oito usuários na proporção de até três por dormitório e serem equipadas com todos os móveis e eletrodomésticos básicos de uma moradia comum. Cada residência deve possuir um profissional de nível superior da área da saúde mental e dois profissionais de nível médio, com experiência ou capacitação em reabilitação psicossocial. Nessas residências ocorrem intervenções sociais, educativas, ocupacionais, comportamentais e cognitivas, com o intuito de melhorar o desempenho dos pacientes e facilitar a reinserção na sociedade.

A luta ainda persiste

Apesar do grande avanço na área da saúde mental, ainda existem pessoas e instituições que visam um modelo asilar. É preciso que os profissionais dessa área conheçam a história da Luta Antimanicomial e reconheçam os atores desse processo. Hoje sabemos apenas da história, sem ter participado dela, das lutas que ocorreram no passado, por isso mostra-se importante o conhecimento e a valorização desses movimentos.

Também é preciso que os municípios efetivem as políticas públicas em saúde mental, criando redes eficientes e que trabalhem em conjunto. Os governantes devem se mostrar dispostos a contribuir para a criação de CAPS e Residências Terapêuticas, pois apenas dessa maneira é possível se distanciar dos modelos manicomiais, que não curam, apenas isolam os sujeitos da sociedade, pois trancar não é tratar.

Alan Martins

Referências bibliográficas

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LEAL, B. M.; ANTONI, C. de. Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS): estruturação, interdisciplinaridade e intersetorialidade. Aletheia, 40, p. 87-101, abr. 2013. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-03942013000100008.

PEREIRA, I. L. et al. Resgatando vidas e redefinindo sonhos: experiência da Residência Terapêutica de João Pessoa – Paraíba. In: SILVEIRA, M. de F. A.; SANTOS JUNIOR, H. P. de O. (Org.). Residências terapêuticas: pesquisa e prática nos processos de desinstitucionalização. Campina Grande: Eduepb, 2011. Cap. 11. p. 259-276. Disponível em: http://books.scielo.org/id/pgwpg.

VIDAL, C. E. L.; BANDEIRA, M.; GONTIJO, E. D. Reforma psiquiátrica e serviços residenciais terapêuticos. J. bras. psiquiatr., 57-1, p. 70-79, 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0047-20852008000100013&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.


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Autor: Alan Martins

Graduado em Psicologia. Amante da Literatura, resenhista e poeta (quando bate a inspiração). Autor e criador do Blog Anatomia da Palavra. Não sou crítico literário, porém meu pensamento é extremamente crítico. Atualmente graduando em Letras.

34 pensamentos

  1. Alan, boa tarde a você e as demais pessoas que como você discorda do tratamento em Manicômios. Somos favoráveis ao tratamento em Serviços de Atenção Psicossocial com equipe multiprofissionais. Precisamos dos vários saberes.#graçaLoureiro

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    1. O trabalho de uma equipe multiprofissional nos Centros de Atenção Psicossocial é muito importante. Isso garante um atendimento integral da pessoa, além de ser um serviço mais humanizado.
      Agradeço a visita. Sigamos nessa luta!
      Abraço!

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  2. Cheguei aqui através do reblog da Jaqueline Bastos. Informativo e esclarecedor esse seu post. Também quero deixar duas sugestões para quem se interessa pelo tema. O clássico livro Alienista, que li na época de vestibular e se faz atual até hoje. E o filme Nise no coração da loucura, o qual assisti recentemente quando comecei o tratamento da depressão por dica da minha psicóloga. Estou preparando uma resenha dele. Enfim, obrigada Alan.

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    1. Ótimas dicas. Assisti esse filme há pouco tempo. Mostra muito bem como a questão da saúde mental era tratada no Brasil antigamente. O livro ‘O alienista’ é um clássico, de leitura muito rápida. Obrigado pelo comentário e pela visita!

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  3. Imagino que muita gente só queira jogar a pessoa da família que está dando problemas e deixar ela em algum canto sem atrapalhar. Isso sem se importar com as condições dela ou o quanto poderia ajudar, e isso é bem triste.
    Esse assunto é muito delicado e devia ser mais bem explorado mesmo.
    Excelente artigo Alan!

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    1. Muito obrigado pelo comentário. O que você disse faz total sentido, há famílias que preferem esconder entes em sofrimento psíquico, pois isso seria um motivo de vergonha para eles. Mais vergonhoso é tratar um ser humano como lixo.

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  4. Quando era criança, na década de 70, havia um manicômio perto de um campo, na cidade vizinha onde morava, que umas amiguinhas me levaram para brincar. Fiquei com muito medo. Tinha uns 6 anos de idade e as atitudes dos pacientes eram bem estranhas para mim. Quando tinha uns 10 anos, acabei voltando com meu irmão mais velho e interagi com eles. Tirou um pouco daquela má impressão, mas, assim mesmo, saí me perguntando se aquilo não era uma prisão perpétua, já que aparentavam estar sem condições de frequentar as ruas e viver em sociedade livremente.
    Não entendo do assunto, não consigo avaliar e nem imaginar como proceder, mas ser condenado eternamente por ter um problema de saúde parece bem cruel!
    Ótimo texto! 🙂

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  5. Posso dizer, por experiência, uma vez que minha mãe sofreu por anos com transtorno bipolar, tendo sido internada por algns dias quando de um surto mais grave (com alucinações), que a questão da saúde mental é de suma importância e que permeia a sociedade como um todo, já que, muito provavelmente, a própria estrutura social está levando a um aumento no surgimento de transtornos nas pessoas. Parece que não estamos sendo preparados para as pressões que sofremos. E não me parece que seja “culpa” nossa… Texto muito esclarecedor e informativo. Obrigado!

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    1. Ainda bem que sua mãe conseguiu um tratamento mais moderno, ficando internada até o surto aliviar. Isso que você disse é verdade, nossa sociedade se organiza de uma forma que são favoráveis ao surgimento de novos transtornos. Não é por menos que dizem que a depressão e a ansiedade são as “doenças do século”. Obrigado pelo seu comentário, você está por dentro do tema.

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      1. Pois… Eu sofro de ansiedade… Mas no meu caso, é mesmo uma questão de “não me encaixar” no modelo social em que vivemos… E não conseguir aceitar o modelo completamente… Minha mãe sofreu muito com a doença, até sua morte. Teve períodos melhores, quando a psiquiatra era também pesicóloga. Daí eu pensar que é muito importante uma abordagem multidisciplinar para a questão…

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      2. Sim, é muito importante mesmo uma equipe multidisciplinar. Por mais que remédios façam mal, há casos onde são extremamente necessários, até para evitar surtos. Porém, só eles não resolvem nada. Por isso faz-se importante um psicólogo. Enfermeiros, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais. Mas o mais importante é que todos estejam livres e longe do viés manicomial, caso contrário, não adianta nada todo o esforço.

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  6. Alan, seu texto é muito esclarecedor. Muito obrigada por isso. Já reparou que nós (como sociedade) sempre isolamos aqueles que, por algum motivo, julgamos inaptos para viver em comunidade? a prisão para os que cometeram crimes, as colônias para os portadores de hanseníase, manicômios… Sinceramente, tem alguma coisa errada nesse raciocínio aí. Beijos.

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  7. Sua análise é muito importante e válida. Esse tema deve ser bem estudado e também se deve gerar mais respeito e atenção quanto a saúde mental das pessoas que dela precisam.

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  8. Oi Alan. Vi um documentário sobre um manicômio em Barbacena que era crueldade pura. Eu ficava pensando onde os “loucos” que não podiam pagar tratamento e a família não sabia ou queria tratar íam parar. Que bom que existem outras opções pra eles. Ótimo post! Bjs

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    1. Sim, hoje em dia essa questão em assistência ao cuidado com pessoas com transtornos mentais melhorou bastante, porém não é muito divulgado. Você já assistiu o filme ‘Holocausto brasileiro’? Ele também mostra as atrocidades cometidas nesse Hospital Colônia de Barbacena. Foi baseado num livro com o mesmo título.

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  9. Este é um tema muito delicado que não podemos fugir. Todo o nosso sistema, há casos diferenciados, que apenas e tão somente olham o paciente como “louco”, esquecendo que trata-se de ser humano. E cabe essa reflexão e ação tanto ao Estado quanto a sociedade juntar os pontos para que a saúde mental seja política séria e humana. Muito bom o post. Grande abraço.

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    1. Precisávamos de mais pessoas que pensam como você, tanto na população em geral, quanto em cargos políticos. Só assim poderíamos melhorar a assistência em saúde mental. Boas palavras, obrigado pelo comentário construtivo. 😃

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