Minhas Leituras #17: Nós – Ievguêni Zamiátin

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“A distopia original”

Título: Nós
Autor: Ievguêni Zamiátin
Editora: Aleph
Ano: 2017
Páginas: 344
Tradução: Gabriela Soares
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— E que última revolução é essa que você quer? Não há última, as revoluções são infinitas. (ZAMIÁTIN, Ievguêni. Nós. Aleph, 2017, p. 237)

A obra mais conhecida do escritor russo Ievguêni Zamiátin [“Nós”] possui a fama de ser a distopia original, aquela que inspirou trabalhos posteriores como “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley, “1984”, de George Orwell e “Cântico”, da também russa, Ayn Rand (nesse a influência é extremamente evidente). Se não fosse por esse romance, finalizado em 1920, talvez esse gênero literário não se consagrasse, talvez esses autores citados não se interessassem em escrever histórias do tipo. Uma distopia é, basicamente, uma utopia que deu errado, ou uma utopia que certas pessoas acham que deu errado, pois são enredos que falam sobre governos totalitários, que abdicam sua população de qualquer forma de liberdade. O livro sofreu censura e não foi publicado na Rússia, devido ao período histórico no qual Zamiátin estava inserido: época posterior a Revolução Russa de 1917, com a ascensão Stálin ao poder. A citação acima demonstra um pouco o teor do enredo, que não ia muito de acordo com os ideais do governo stalinista.

Um pouco sobre a vida do autor

Formado em engenharia naval, Zamiátin demonstrou maior interesse pela escrita, escreveu diversos contos, alguns romances e também traduziu obras para o russo. Trabalhou na área na qual se formou quando foi enviado ao Reino Unido, em 1916, para supervisionar a construção de navios quebra-gelo. Entretanto, sua grande paixão foi a literatura, algo do qual não podia viver sem; sua felicidade era escrever.

Foi um grande revolucionário, se aliou ao partido Bolchevique, chegando a ser preso duas vezes, uma vez durante a Revolução Russa de 1905 e uma segunda vez em 1911. O autor sofreu grande repressão em seu país de origem, sendo proibido de publicar qualquer coisa (as editoras também foram proibidas de publicá-lo). O livro “Nós”, foi publicado, pela primeira vez, apenas em 1924, nos EUA, ao ser traduzido para o inglês. Zamiátin precisou apelar à Stálin, em 1931, redigindo uma carta, solicitando permissão para deixar a União Soviética. Seu pedido foi aceito e ele se mudou para Paris, junto de sua esposa. Os últimos dias de Ievguêni Zamiátin foram tristes, morreu pobre, vítima de um ataque cardíaco.

“— Quem sabe… O homem é como um romance: até a última página não se sabe como vai terminar. Do contrário, não valeria a pena ler…” p. 220

A distopia original

Aqui temos os fundamentos básicos para toda distopia, já que todo livro desse gênero possui alguma semelhança com “Nós”. O enredo ocorre mil anos após a instalação do Estado Único, um estado totalitário e controlador, governado por uma figura conhecida como o Benfeitor. Todo ano há uma eleição e o Benfeitor sempre vence com unanimidade, afinal ele é o único candidato. As pessoas são altamente controladas: seus horários são regrados, suas tarefas são designadas pelo Benfeitor, até o sexo é controlado, com datas pré-estabelecidas. Não há afeto entre as pessoas, não no sentido amoroso. Para possuir um parceiro sexual, é preciso assinar um tipo de documento que diz que ambas as partes estão de acordo, e no dia marcado para o ato, a pessoa deve apresentar um talão, uma espécie de comprovante, ao seu parceiro. As construções são todas feitas de vidro, não há privacidade. Todos são vigiados pelos agentes do Estado Único, que preza pelo coletivo sobre o indivíduo. Aqui, todos são o corpo, não existe célula individual. Como George Orwell observou muito bem em sua resenha sobre “Nós”, trata-se de um romance escrito antes da invenção da televisão, até por isso não há muita descrição sobre os avanços tecnológicos alcançados por essa sociedade distópica.

Ninguém é conhecido como pessoa, todos são designados como números e todos se vestem de maneira semelhante, pois possuem seus unifs (uniformes). O protagonista se chama D-503, um matemático que está trabalhando em um grande projeto futurista. Após conhecer uma mulher, I-330, D-503 começa a apresentar comportamentos considerados estranhos. Como a imaginação, o sonhar e o se apaixonar não fazem parte do cotidiano dessa sociedade, o protagonista começa a pensar que está doente, pois tudo isso começa a fazer parte de sua vida. Dessa forma, ele se vê no meio de uma revolução que está prestes a acontecer.

O Estado Único é composto por uma sociedade que vive o cúmulo do racionalismo. Tudo é matemático, cada questão é calculada de maneira milimétrica, porque a matemática é uma ciência exata, racional. Os costumes dos povos ancestrais, do século XX, são rejeitados, considerados bárbaros, irracionais. Até mesmo comer uma fruta é um ato animalesco; a comida que consomem é sintética, derivada do petróleo. Os poetas sofrem influência da matemática em suas obras, entoando odes ao Estado Único. A liberdade é suprimida, pois, segundo a filosofia desse governo, a felicidade só pode ser alcançada quando não existir liberdade, só assim todos podem ser felizes (ou iguais?).

“[…] Esta é a distribuição: uma tonelada tem direitos, um grama tem deveres. Esse é o caminho natural que conduz do nada à grandeza: esquecer que você é um grama e sentir-se a milionésima parte de uma tonelada…” p. 16

A escrita de Zamiátin

Ao menos neste livro, uma escrita um tanto quanto peculiar é apresentada. É um pouco confusa, devido ao modo que o escritor utiliza para construir sua prosa. Além disso, o enredo, narrado em primeira pessoa, não é um dos melhores, ainda mais na forma que é apresentado. Não se trata de uma leitura fácil, até pelo fato de o livro possuir grande teor político e filosófico.

Devido ao fato de Zamiátin ter estudado engenharia naval, a matemática mostra-se muito presente no enredo. Ela é parte essencial do Estado Único e do protagonista. A religião também influenciou bastante este livro, com diversas citações bíblicas, ou com algumas referências. O taylorismo é bastante citado e ajudou a formar essa nova sociedade, que segue os seus princípios. E principalmente, o marxismo, ideias que Zamiátin apreciava.

Boa parte dos diálogos e dos pensamentos do protagonista, que também é o “autor” do livro, são altamente filosóficos e políticos. Não há muita ação, as partes de maior ação são os momentos onde execuções são descritas, pois o Benfeitor pune aqueles que fogem à regra, sendo essa punição a morte. Muito semelhante ao que acontecia na França totalitarista.

Uma outra característica do autor é o uso excessivo de reticências (assim como muita gente faz no Facebook ou no WhatsApp), e também o de “:” (dois pontos).  Isso deixa a leitura bastante confusa. Porém é uma leitura rápida, já que o livro é dividido em muitos capítulos bem curtos, e um fato interessante é o de que cada capítulo possui um breve resumo do que está por vir.

Apesar de fazer parte do partido do proletariado e apoiar a revolução, o autor mostrou-se descontente com o rumo que o novo governo soviético vinha tomando. E mesmo que “Nós” não seja uma sátira direta, é possível encontrar algumas alusões ao que vinha ocorrendo na União Soviética, como o grande controle estatal e a perda de certas liberdades. Isso contribuiu para a censura sofrida.

Um ponto muito positivo são as metáforas utilizadas por Zamiátin, muito criativas. Além disso, o livro está repleto de citações muito boas, frases de bastante efeito, filosofia da boa.

“— Por que você pensa que as bobagens são coisas ruins? Se a tolice humana fosse nutrida e cultivada ao longo dos séculos da mesma maneira que a inteligência, talvez conseguíssemos dela algo extraordinariamente precioso.” p. 181

Beleza estética

Essa é uma das edições mais bonitas que já tive o prazer de ler. O trabalho gráfico feito pela Aleph é de primeira. O design, tanto exterior quanto interior, é muito lindo. A encadernação é em capa dura, com as bordas pintadas de laranja e preto, dando um aspecto único ao livro, algo que chama a atenção ao vê-lo na prateleira. Um detalhe que pode passar batido por alguns, mas que é bastante inteligente, é a mudança da fonte utilizada quando D-503 descobre o mundo além dos muros do Estado Único. Quando ele descobre essa realidade, a editora utilizou uma fonte sans serif para dar enfoque a esse momento. O papel utilizado no miolo é o Pólen Soft, com boa diagramação e bom espaçamento para as bordas das páginas.

Além do texto integral, traduzido diretamente do russo por Gabriela Soares (uma pessoa que se dedica ao estudo desse idioma), esta edição traz uma resenha escrita por George Orwell e também uma carta escrita por Zamiátin, endereçada a Stálin, solicitando sua permissão para deixar a URSS. Uma joia na prateleira de qualquer leitor apaixonado.

Um clássico

Sim, este livro é um clássico, tanto da literatura russa, quanto do gênero distopia. Uma leitura indispensável para qualquer fã de “Fahrenheit 451” ou “Jogos vorazes”. Trata-se da obra que marcou esse gênero e abriu caminho para aqueles que sucederam Zamiátin. Apesar de não se tratar do melhor e nem do mais empolgante livro distópico, é o primórdio de todos eles e merece ser conhecido.

Ademais, é possível fazer uma ligação entre o presente e os acontecimentos do livro. Vivemos uma rotina, que gira em torno do nosso trabalho. Nosso tempo é contado, com cada hora designada a algo diferente. Assim como as personagens da distopia, nós também possuímos algumas horas para o lazer pessoal. A diferença maior está na questão da liberdade, que ainda está presente em nossa sociedade, não plenamente, mas está.

Minha nota (de 0 a 5): 4

Alan Martins

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A beleza estética do livro é incontestável, belo trabalho da Aleph. Pena que o meu veio com um pequeno defeito. 😥

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Autor: Alan Martins

Graduado em Psicologia. Amante da Literatura, resenhista e poeta (quando bate a inspiração). Autor e criador do Blog Anatomia da Palavra. Não sou crítico literário, porém meu pensamento é extremamente crítico. Atualmente graduando em Letras.

15 pensamentos

  1. Que fantástico! Dia desses vi um post da Aleph no Facebook sobre o livro e como finalmente ele tinha chegado numa versão em português e por se tratar de um escritor russo, eu já fiquei interessado. Tolstoi, Dostoiévski, Asimov são incríveis, e bem, sua resenha está muito boa! Com certeza irei procurar o livro, já que tenho outro blog voltado a literatura também.

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    1. Não chega a ser um drama. Claro, podemos dizer que essa descoberta de uma nova realidade pelo protagonista é uma espécie de drama, pois é algo que desmorona tudo aquilo que ele possuía por verdade e correto. É um livro esclarecedor, que nos faz refletir. Mas sim, de certa forma há o seu drama. Eu recomendo a leitura, vale a pena.

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