“Realismo mágico nipônico”
Título: Caçando carneiros
Autor: Haruki Murakami
Editora: Alfaguara
Ano: 2014
Páginas: 336
Tradutora: Leiko Gotoda
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— As células se renovam a cada mês, até mesmo neste exato momento em que conversamos — disse ela estendendo a mão delicada diante dos meus olhos. — Quase tudo o que você pensa saber a meu respeito são apenas lembranças. (MURAKAMI, H. 2014, p. 183-184)
Esta obra, que é uma mistura de muitos gêneros, é o último livro da chamada “Trilogia do Rato”, além de ser o primeiro romance publicado do grande nome da literatura japonesa contemporânea, Haruki Murakami. Bem, essa é a parte final da trilogia, porém o livro “Dance dance dance” (Alfaguara, 2015), funciona como um quarto episódio, talvez como um epílogo; porém não é tão parte da trilogia por trazer apenas alguns personagens dos livros anteriores. Enfim, aparentemente é uma trilogia, que possui um quarto livro com uma certa conexão. “Caçando carneiros” segue a história do protagonista sem nome e de seu amigo, o Rato, apresentados nas histórias anteriores “Ouça a canção do vento & Pinball 1973” (Alfaguara, 2016). VEJA a resenha que fiz sobre essas duas novelas que foram publicadas em volume único aqui no Brasil.
O surrealismo continua, porém com alguns acréscimos
Podemos classificar esse romance como surreal, assim como as duas obras que o antecedem. Muitas dessas características foram mantidas e muito melhor trabalhadas pelo autor. É notável a melhora que sua escrita sofreu. O enredo se passa em um mundo real, o Japão do final da década de 70 é apresentado, porém a construção da narrativa adiciona certos elementos que fazem esse mundo real parecer irreal. É algo bem louco, porém que funciona. Até por isso podemos classificar o livro como “Realismo mágico”.
No primeiro livro da trilogia, o surrealismo imperava. O enredo até não possuía muito sentido, o que foi melhorado no segundo, entretanto a bússola continuava apontando para uma única direção, ou melhor, não apontava para lugar algum. Já nesse terceiro episódio, muito disso ainda está presente. Vejamos alguns exemplos. Nessa história, nenhum personagem possui nome, talvez até possuam, mas são referidos pela profissão, ou pela relação que possuem com o protagonista, também sem nome. Apenas temos o Rato, que nem é um nome, o J e o gato velho que o protagonista cria, que recebe um nome na metade do livro, sendo batizado de Sardinha. Esse gato garante alguns momentos cômicos. Temos a namorada do protagonista, dona de um certo poder, com suas lindas orelhas sendo capazes de “ouvir coisas”, como um sexto sentido, uma percepção apurada. Além disso, são as orelhas dela que cativam o protagonista. Temos também a figura de um mítico carneiro que movimenta a história, sendo o objetivo principal da trama.
O que torna esse um romance surreal é o fato de tudo ser levado de maneira natural por todas as personagens. Ninguém questiona a lógica de nada, até porque isso estragaria a magia e o encanto que o livro proporciona. Fora o surrealismo, temos a adição de elementos de mistério e aventura. Boa parte do enredo se foca em uma busca, que não é repleta de ação, mas sim envolta por um grande mistério a ser desvendado. Ademais, temos uma generosa dose de humor, o que faz a leitura ser gostosa e nada pesada. Cada elemento da construção do enredo contribui para esse lado humorístico. A narração em primeira pessoa ajuda nisso.
Uma outra característica que se manteve foi a de as personagens beberem muita cerveja e serem fumantes ávidos. Porém, aqui, houve a adição de suco de uva, algo que todos bebem, parece que só existe suco de uva, nenhum outro. Falei que muita coisa não faz sentido.
Interessante os elementos que compõem o enredo. Mas, do que se trata?
Não se trata de uma continuação direta, não do ponto exato onde “Pinball 1973” terminou. Alguns anos já se passaram, o protagonista expandiu seus negócios, até se casou. A história começa triste, com o protagonista separando-se de sua esposa, e até essa uma cena apresentada de maneira surreal. E, pouco tempo depois, de forma (advinha qual? Surreal, acertou!), ele encontra uma nova namorada, dona de belas orelhas, que vai acompanha-lo pelo resto do enredo. O Rato, um personagem que sempre foi misterioso e instigante, aparece pouco, fisicamente menos ainda. Há algumas cartas que ele escreveu ao protagonista e podemos saber um pouco do que aconteceu por ele através delas. J, dono de um bar na cidade natal do protagonista, também aparece bem pouco.
O foco da narrativa é mais no protagonista. O objetivo do enredo fica mais claro quando um homem trajando terno, que trabalha para o dono de uma grande corporação, muito influente na política e na economia do Japão, entra em cena. Seu pedido? Que o protagonista encontre um carneiro que seria detentor de poderes especiais, pois o Chefe precisa muito encontrar esse animal. Sem contar muito sobre o enredo, essa é a aventura na qual embarcamos.
Um livro único, original e criativo
São poucos os autores que conseguem criar uma mitologia fantástica dentro de um mundo real. Murakami conseguiu isso. A história do carneiro acaba se tornando crível com as explicações históricas que são apresentadas. Não são simples fatos jogados na cara do leitor, não, há a tentativa de firmar esse lado fantasioso. Criou-se o mito desse carneiro detentor de poderes especiais, há todo um pano de fundo. Quem ler esse livro aprenderá um pouco sobre carneiros e ovinocultura, além de desfrutar de uma boa leitura.
O autor criou uma cidade fictícia, chamada Junitaki. É uma cidade pequena, bem construída e caracterizada. Mas Murakami decidiu ir além e criou uma história para a cidade. Ele narra como a cidade foi colonizada, como ela começou do zero e se desenvolveu. Nem parece que se trata de uma cidade que não existe no mundo real.
Um grande clima de mistério toma conta do enredo a partir de certo momento. Isso motiva a leitura, faz com que a vontade de virar as páginas o mais rápido possível tome conta do leitor. Esse carneiro vai prender a sua atenção. E o Rato? Caramba, o que será que aconteceu com esse personagem tão legal? As outras personagens que compõem a trama também são legais e interessantes, como a namorada do protagonista.
Grande parte dos diálogos apresentam um tom filosófico. Não são falas rebuscadas ou difíceis. São simples e bem colocadas. Boa parte das conversas entre o protagonista e sua namorada são dessa forma. Não são falas românticas, de amor. Não há muito disso no livro, frases bonitinhas, de paixão. Os dois fazem muito sexo e se gostam, só.
Ler os romances anteriores é muito recomendável. Não que seja necessário para a compreensão, porém quem não os ler perderá muita coisa, mesmo que não fique confuso com o enredo.
Parte física
Quanto a isso, não há sobre o que reclamar. Essa edição segue o padrão das publicações da Alfaguara. Apresenta capa comum, com orelhas, fonte de bom tamanho, papel de qualidade para as páginas, ou seja, Pólen Soft. A tradução é a mesma da edição publicada em 2001 pela editora Estação Liberdade. Leiko Gotoda, que foi pioneira na tradução de livros diretamente do japonês para o português do Brasil, contribuindo muito para a popularização da literatura nipônica por aqui, traduziu essa obra de maneira exemplar. Achei interessante a tradutora utilizar muito a palavra “lusco-fusco”. Não que isso seja ruim ou bom, é apenas uma curiosidade. Os revisores fizeram um bom trabalho também, encontrei apenas dois erros gramaticais, porém nada que prejudique ou que seja um erro gravíssimo.
O Veredicto
Muito mais do que recomendado. Murakami é um autor mágico, que consegue transformar o real em fantasia e vice-versa. Não há muitos autores que conseguem escrever da mesma forma que ele. Sua escrita é muito influenciada pela música e isso se reflete em seus livros, com muitas referências musicais. “Caçando carneiros” é uma história mágica, surreal, que não pode ser levada na seriedade, pois seu tom é humorístico, o que proporciona uma leitura deliciosa e rápida. O livro é dividido em vários capítulos e subcapítulos, deixando-o dinâmico e nada cansativo. Aproveite para conhecer um pouco da cultura japonesa, apesar de esse não ser o autor mais japonês que existe, já que a cultura ocidental é a grande referência de Murakami. A “Trilogia do Rato” é uma trilogia única, mágica e divertida, não se vê por aí muita coisa parecida.
Minha nota (de 0 a 5): 4,5
Alan Martins

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