DA INOCÊNCIA À REALIDADE: A INFÂNCIA E A VIDA ADULTA

Se perguntarmos para alguém sobre a diferença entre a infância e a vida adulta, uma resposta será dada sem qualquer dificuldade. Uma diferença, seja qual for, será apontada. Isso mostra com total clareza que a vida muda quando deixamos de ser criança e nos vemos como adultos. São fases distintas e muito bem caracterizadas. Dentre as milhões de divergências que poderiam ser pontuadas entre essas duas fases, esse post vai discutir sobre uma em particular, uma característica muito marcante, porém uma que poucos localizariam logo de cara, como uma primeira resposta. Talvez uma criança possa apontar isso com mais facilidade, todavia seria uma resposta mais rara em um adulto, a não ser que se trate de um adulto sonhador. Acredito que o título resume muito bem a discussão que virá a seguir, apenas com menos detalhes.

A nostalgia

Há certos locais da cidade onde vivo que me remetem a alguns anos atrás. Não sou nada velho, porém o conceito de adulto já foi injetado em mim e agora percorre minhas veias. Quando vejo certos lugares que costumava frequentar, tenho a impressão de sentir a mesma coisa que sentia quando tinha 8 anos, ou talvez seja apenas a recordação de um sentimento que desperta tais sensações. É difícil de explicar, sentir isso é muito mais fácil do que descrever, muito mais prazeroso também. O poeta vive tentando transformar sentimentos em palavras, mas nem mesmo o melhor deles consegue fazer uma tradução 100% fiel. Viver o momento, sentir a experiência, é algo indescritível, assim como a memória que se criará, onde esse sentimento poderá ser revivido. Por mais que frases bem construídas consigam transmitir certo poder, nunca se aproximarão do real sentimento, assim uma lembrança é capaz de fazer.

Na maior parte do tempo, o que me lembro é de como eu via o mundo de outra forma, quantas coisas estavam ocorrendo naquele momento, coisas que sequer tinha noção. Isso me faz pensar que seria bom ser quem sou hoje naquele tempo, ao mesmo tempo em que me recordo das outras visões que tomavam conta do meu eu em miniatura. Pensando bem, aquilo era o que eu deveria estar fazendo, cada situação tem o seu tempo, o avanço desesperado apenas atrapalha o movimento da roda da vida.

Bate uma saudade da inocência que pairava ao redor, como uma áurea. Não que crianças sejam seres puros e perfeitos, longe disso, crianças possuem maldade, já conseguem ter uma noção do certo e do errado, a maldade faz parte de nós desde cedo. Entretanto, muita dessa maldade e distinção que as crianças fazem, foram aprendidas com os adultos.

Essa inocência seria no pensar que tudo tem uma solução, não se preocupar com problemas, que tudo pode ser adiado, a imaginação desatada. Coisas simples que fazem parte do “ser criança”, que acabamos perdendo no indefinido ponto onde a vida adulta dá a largada.

Ser criança

Nem sempre a concepção de infância foi essa que temos na atualidade, como alguns estudos apontam. Na Idade Média, por exemplo, a distinção entre adultos e crianças era muito tênue, a arte deixa isso claro, em como as crianças eram retratadas em pinturas e esculturas. Pode-se dizer que elas viviam como adultos, apenas em tamanho reduzido. Um fato triste de se apontar é o de que isso ainda acontece, mesmo após tantos séculos. Muitas crianças precisam trabalhar para ajudar a família, ou porque são obrigadas. Uma pessoa que deixa de vivenciar a infância jamais terá outra oportunidade para isso, já que existe o momento adequado para essa vivência e a vida adulta já não permite mais que esse comportamento seja evocado.

Ainda bem que o conceito de infância evoluiu e hoje a maioria das pessoas possui a oportunidade de ser criança. É uma época mágica, onde tudo é novo e tudo é grande. Mesmo a menor das cidades se torna uma metrópole, que sempre parece ter um detalhe que passou despercebido da última vez. As sombras guardam o mal e escondem seres inexplicáveis, assim como aquele que vive debaixo da cama. O amanhã é apenas mais um dia para brincar, novos mundos para descobrir; o futuro é isso: mais diversão. Tudo tende apenas a melhorar, isso é o que há de mais inocente para se pensar, mas é o pensamento de uma criança. Fantasia define esse período da nossa vida.

A vida adulta

Quando a realidade bate à porta e decidimos abri-la, por vontade própria ou por coerção, a paisagem que vemos muda por completo. Bem-vindo a realidade, daqui em diante você sentirá falta da inocência que tomava conta do seu ser. O que virá a seguir pode até soar pessimista, mas não soa. Fatos são fatos. Muita coisa muda, mas principalmente o que influenciará essas mudanças com mais força é a perda da inocência.

Definir o momento em que tomamos noção da realidade parece algo impossível, e nem tentarei isso. Mas, uma hora isso acontece. É aí que várias das fantasias que tínhamos são destruídas, pisoteadas, esmagadas (você entendeu, né?). Sabe aquele monstro que vivia debaixo da cama? Pois bem, ele sofreu uma terrível mutação e se transformou no monstro mais temido pelos adultos: o boleto não pago. E aquela ideia de que tudo iria melhorar? Trabalhar e estudar, fazer tudo ao mesmo tempo sem a certeza de uma vida melhor, faz essa ideia de antigamente parecer… coisa de criança!

Foram apenas alguns exemplos, mas que mostram bem a mudança radical entre esses dois períodos. Nos tornamos chatos na vida adulta, pessoas sem graça que vivem lutando contra o tempo. Buscamos com ferocidade maneiras de nos diferenciarmos dos outros: somos de esquerda ou direita, humanas ou exatas, Corinthians ou Palmeiras; e ainda nos vangloriamos disso. Vivemos baseados em ideologias, menosprezando quem pensa diferente, nos sentindo mais inteligentes por discordar de alguém. Ainda temos a capacidade de nos julgar “seres racionais”. Nos preocupamos demais com outros motivos que assolam a vida, como dinheiro, trabalho, deixando de nos preocupar com nós mesmos e com aqueles que estão ao redor. Também passamos a ver a criança como algo chato ou incômodo, em algumas situações. Ficamos transtornados quando vemos uma criança fazendo algo que consideramos perigoso ou errado. Como outro dia, quando conduzia uma moto por uma rua movimentada e avistei dois meninos empinando suas bicicletas em meio ao trânsito. Tive dois pensamentos ao presenciar isso. O primeiro pensamento que tive foi: “Que loucos, não tem noção do que fazem. Depois que se machucarem, vão ver.”. O segundo foi: “Caramba, estou realmente envelhecendo”.

Sabe aquele cara que você disse que jamais seria, quando era criança? Lamento dizer, mas ser adulto é ser esse cara.

É tão ruim assim ser adulto?

Não. De onde você tirou essa ideia? Ah, de minhas palavras pessimistas. Ser adulto é muito bom, é parte da vida. Podemos fazer muitas coisas divertidas que uma criança não consegue fazer, podemos construir coisas, pensamos abstratamente. Além disso, você será adulto pelo resto de sua vida e sofrerá uma outra mudança quando envelhecer. A vida é formada por fases, devemos aproveita-las da melhor maneira possível, para que se possa extrair o melhor de cada etapa. Porém as questões que movem o mundo nos tornam um pouco chatos, de mente fechada, sem capacidade para imaginação.

Claro, que se você for um adulto, você não agirá como uma criança. Não é mesmo para um ser crescido brincar com brinquedos infantis, imaginando que moinhos de vento são gigantes (como Dom Quixote). Se você fizer isso será taxado como esquisito, ou vão pensar algumas coisas estranhas a seu respeito. O que também não o impede de brincar com seu filho. Fantasiar é bom, é isso que constrói o sentimento de esperança. Alguém sem esperança não corre atrás dos sonhos, nem faz o que gosta. Pessoas que trabalham com a criatividade, como escritores, pintores e músicos são privilegiadas, pois conseguem perpetuar essa inocência da infância pelo resto da vida, já que necessitam fantasiar.

Um aspecto ruim da vida adulta é a noção de “ser bem-sucedido” que a sociedade possui. Há uma noção de sucesso aqui no Brasil, que é estudar, passar em um concurso público para ter um bom salário, se casar e ter filhos. Viu como a visão de um adulto se limita? O mundo é formado por infinitas possibilidades, porém apenas alguns poucos caminhos são valorizados pela sociedade. E se você sair um pouco desse caminho planejado, será taxado como louco, não há um incentivo ao investimento pessoal em um sonho. A realidade destruiu por completo a inocência.

Será que quem muda é o mundo, ou somos nós? Talvez o mundo seja apenas o mediador dessas mudanças que nos acometem, ao mesmo tempo que nossas mudanças transformam o mundo. Ser adulto é muito bom, não há dúvidas, o que não podemos fazer é deixar os problemas apresentados pela realidade destruir os pequenos prazeres da vida. Porém o bom mesmo é ser criança, que mesmo quebrando um dente consegue dar risada, diferente de um adulto, que vai se preocupar em pagar o dentista, que não é nada barato.

Alan Martins

inocencia_realidade
Boy and girl walking on bridge during daytime, por freestocks.org; Business men, por Antony Marques (editado). Publicadas sob licença Creative Commons. Disponíveis em: https://www.pexels.com/photo/bridge-child-children-fashion-191034/ e https://www.flickr.com/photos/antony__sunyu/6831905348/in/photostream/

Licença Creative Commons
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

Autor: Alan Martins

Graduado em Psicologia. Amante da Literatura, resenhista e poeta (quando bate a inspiração). Autor e criador do Blog Anatomia da Palavra. Não sou crítico literário, porém meu pensamento é extremamente crítico. Atualmente graduando em Letras.

14 pensamentos

  1. Por onde começar? “O poeta vive tentando transformar sentimentos em palavras, mas nem mesmo o melhor deles consegue fazer uma tradução 100% fiel. Viver o momento, sentir a experiência, é algo indescritível” Meu eterno dilema ao tentar escrever/ descrever o que me cerca ou o que sinto. Bom mesmo é ler o escritos de outra pessoa e perceber que ela conseguiu trazer tudo aquilo que eu queria passar em palavras exatas ( experiência ), por isso amo muito ler; escrever é mais necessidade da alma, desta que ainda está tentando se encontrar nesse mundo adulto e ás vezes precisa se esconder no quarto para fantasiar e escrever histórias. Ás vezes me acho sortudo como poeta ainda consegui sentir e notar as pequenas coisas do dia-a-dia e ser taxado como louco ou bobo; ás vezes me pego pensando que há muito a se fazer, estudar, estudar, passar num concurso, estabilidade financeira… a vida adulta e suas exigências diárias. Noto que me vejo cada dia mais nostálgico, relembrando momentos da infância e me pergunto como é ter 5 anos e já não sei! Vejo crianças brincando e já não sei o que é passar horas correndo e no fim do dia planejar a próxima brincadeira e não a mochila, a rota do dia seguinte, o despertador para acordar cada vez mais cedo e não atrasar os compromissos. “A realidade destruiu por completo a inocência.” Sinto falta dela. Porém ainda me vejo sonhando e para alcança-los( os sonhos) tenho que colocar os pés no chão e correr atrás como um adulto, planejar e viver em função de alcançar os objetivos… “o que não podemos fazer é deixar os problemas apresentados pela realidade destruir os pequenos prazeres da vida.” então, ainda me resta sorri comigo enquanto observo os idosos, as crianças, as plantas, a correria alheia e agradeço pelo sol e tento encontrar beleza nas nuvens escuras em dias de chuva.

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  2. Eu tive uma infância incrível, do meu ponto de vista, é claro. As pessoas me achavam fechada, quieta. Não gosta e brincar com outras crianças. Era mais introspectiva. Não mudei muito hoje. Não gosto de me misturar. Prefiro uma mesa ao fundo, longe da turbamulta, de onde apreciar os movimentos. As pessoas em suas vidas-realidades. Sempre gostei de observar, ponderar e ‘tragar’. Sou com os gatos que passam incontáveis horas sem se mover.
    Aprendi na infância a identificar o meu time, a sentir os movimentos. A fechar os olhos e ver dentro. Preservei tudo isso. A monotonia é essencial, mas nos tempos contemporâneos, é quase doença. Existe uma necessidade estranha de ser feliz e a tristeza é vista como inimiga.
    Problemas todos temos, na infância eram os de matemática que davam trabalho. Na vida real das coisas são as contas e afins que cumprem esse papel. Mas uma coisa não muda, independente da idade: é preciso respirar.

    Gostei do seu post e gostei de ‘observá-lo’ daqui.
    Esse dia de maio está lindo!
    bacio

    Curtido por 2 pessoas

    1. Gosto da monotonia também e isso não significa ser triste. É apenas um meio que a pessoa se sente feliz, é seu jeito de ser. Quem fica rotulando são os outros, que pensam diferente e não conseguem compreender as diferenças. Obrigado pelo cometário, gostei muito. Ótimo dia!

      Curtido por 1 pessoa

  3. Adorei o post!!! “O monstro debaixo da cama passa a ser o boleto não pago”….risos….é isso mesmo. Essa noção do bem-sucedido, da pessoa que segue padrões e normas sociais realmente é horrível e tem um alto custo psicológico para o indivíduo. Abçs.

    Curtido por 1 pessoa

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